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Crônicas e cicatrizes

Ouvi dizer que a crônica está morrendo no Brasil. De fato, nesse país onde o índice de leitores é absurdamente baixo e cai a cada ano, a crônica não é a única que parece estar morrendo. Também parecem definhar os romances, os contos, toda e qualquer possibilidade de literatura, cada sopro de poesia. Todos os dias, morre a possibilidade de nascer um leitor. Somos vítimas de uma alta taxa de mortalidade leitora. 


Christen Dalsgaard, “In a pine wood. Study” (1863)

Apesar disso, arrisco dizer que a crônica está bem longe do seu último suspiro. Como poderia, se a definição daquilo que é crônico é, justamente, “duradouro”? Se carrega em seu nome a essência de “permanecer”? A crônica emerge das entrelinhas do cotidiano, dos detalhes mais sutis, do ordinário, e deixa marcas profundas na pele, daquelas que não somem com o tempo. Ela é como uma cicatriz.


Ao retomar suas origens, podemos dizer que a crônica surgiu nos periódicos e jornais, com uma narrativa breve e acessível ao público leitor. Comentava sobre os acontecimentos cotidianos e os aspectos políticos e culturais através de um tom leve e, muitas vezes, cheio de humor. Porém, se nos limitarmos a isso, a crônica pode soar anacrônica. Datada, fora de época. Aquele tipo de texto que só se vê em aulas de literatura – daqueles bem chatos.


Só que não é bem assim. É claro, ela precisou passar por certas mudanças e se adaptar para sobreviver em um mundo onde a atenção é constantemente disputada por luzes e vozes incessantes, vídeos curtos, dancinhas e páginas de fofoca. Ela se infiltrou nessas telas em formato de blogs, colunas, newsletters. Metamorfoseou-se para caber nesse espaço. E, ainda que meio escondidinha, ela existe no meio desse caos. Com toda essa mudança, ela certamente teve que deixar algumas coisas para trás, mas também encheu-se de novidades. Talvez seja por isso que muitos não a reconhecem em sua nova face. Mas a verdade é que a literatura precisa – e sempre precisou – se transfigurar para permanecer.


Nesse raciocínio, podemos nos questionar: “mas, afinal, o que é literatura?”. E, ao nos aprofundarmos em busca de respostas, podemos chegar à conclusão de que ela é fruto do tempo e das necessidades de seu público. Em outras palavras, a literatura é um produto criado por pessoas de determinado tempo-espaço, para que elas possam dizer algo por meio da melhor forma possível. Ou seja, ela só existe porque sentimos uma urgência tremenda de dizer. Sendo assim, somos nós que definimos o que é literatura. E quem é esse “nós”?

Jan Davidsz. de Heem, "Still life with books" (1628)

Nós somos um amontoado de experiências, perspectivas, contextos. Somos moldados por crises e esperanças. Somos formados pelas histórias que lemos, ouvimos e vivemos. Somos intertextualizados! E a literatura, incluindo a crônica, sempre é – e sempre foi – uma construção coletiva e dinâmica. Ela é um organismo vivo, um ser infinitamente pulsante. Logo, posso apostar que a crônica não está morrendo, mas sim assumindo novas formas, adentrando novos espaços, percorrendo novos caminhos. E, para viver em tanto movimento, ela precisa estar vivíssima. 


Ela ainda tem muito a viver, espalhando resquícios de si mesma por onde quer que vá, se adentrando em pedaços esparsos de arte. Assim, enquanto houver quem escreva e quem leia, a crônica continuará a existir. A literatura também, pois como qualquer organismo vivo, ela precisa se adaptar, se transformar e evoluir se quiser sobreviver. Ah, e ela quer! O que ela mais quer é permanecer. E é justamente nesse movimento, nessa dança descompassada, que a literatura cumpre seu papel de narradora da existência humana. Existência essa que é falha, inconsistente, cheia de marcas e cicatrizes. Mas tão, tão bonita… 

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