O Acontecimento, da autora contemporânea Annie Ernaux, foi publicado pela primeira vez na França, no início dos anos 2000, porém, foi publicado aqui no Brasil apenas em 2022, pela Fósforo Editora. O livro é aparentemente curto, mas não podemos nos enganar ao pensar que a leitura de oitenta páginas seja fácil ou rápida, porque nos deparamos com uma narrativa densa e de muito conteúdo.
Logo nas primeiras páginas, descobrimos que o tal acontecimento narrado é um aborto, e além disso, autobiográfico. Aliás, toda a obra de Annie Ernaux pode ser considerada autobiográfica, e não apenas como uma autoficção que narra a própria vida do início ao fim, mas sim, tendo cada livro como um relato autobiográfico. Esses relatos, no entanto, não limitam o leitor a pensar exclusivamente na escritora, como também incitam reflexões em torno de toda a sociedade. Há outros títulos publicados pela mesma editora, como "Os Anos", "O Lugar", "Paixão Simples", entre outros.
Assim, a experiência de ler O Acontecimento é como se sentar com a autora e ouvi-la contar esse fato muito íntimo, confiando a nós, leitores, uma história tão sua. Inclusive, a forma com que a Annie constrói o seu discurso se assemelha muito a uma conversa. Ela alterna entre registrar suas memórias daquele momento vivido e trazer suas próprias reflexões sobre o porquê de escrever e registrar "o acontecimento". É como se pudéssemos acompanhar de perto o seu processo de escrita e que tipo de sentimento as recordações dessa época provocam. Mas, para ela, o esforço em recordar vale a pena pelo objetivo final de registrar: "se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo", escreve.
Afinal, a temática do aborto é, de fato, uma questão complexa e que engloba tantas outras questões, tanto sociais quanto éticas, entre elas: a educação sexual, perspectivas culturais e religiosas, o direito da mulher, a ética médica, aspectos econômicos e sociais, etc. Tudo isso está presente, de forma explícita ou implícita, na narrativa.
Por fim, pensar nessa temática a partir da perspectiva de uma mulher de 23 anos que realiza um aborto clandestino na França dos anos 60 é, além de muito interessante, essencial para que o leitor se permita formar uma visão realista e embasada sobre o assunto. Porque ter acesso aos acontecimentos reais é muito melhor do que viver supondo situações. E é necessária muita coragem para escancarar esse fato ao mundo. Annie Ernaux fez um grande favor à sociedade compartilhando sua história!
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